De marchinhas e paixões

Esperava ansiosamente por aquela época. Tal como uma criança à espera de um desejo, punha-se a contar os dias, as horas e até mesmo os minutos. Esquecia dos problemas, das dificuldades financeiras, das discussões quase que diárias com a mulher, da correria com os filhos. Esquecia inclusive, vejam só, de que não gostava de bichos de estimação – apesar de ter dois cães e ter de levá-los para passear, a contragosto, de manhãzinha e na volta do trabalho.

Um mês antes, pelo menos, se punha a ensaiar quase que cotidianamente. Para desespero dos vizinhos, que sempre escutavam os últimos acordes altas horas da madrugada. Até sair com os amigos de futebol, para beber, ficava relegado a segundo plano. O que valia, naquele período, era ensaiar, exaustivamente, mais uma das marchinhas feitas para o tradicional concurso da cidade.

Sandoval nunca ganhara uma edição daquela que era, na sua visão, a mais árdua competição do mundo. Para ele, era como se recuperasse os ares da mocidade, da boa e doce boemia. Imaginava-se cantando, a plenos pulmões, mais uma de suas criações. Nas palavras dele: “Dessa vez, o mundo há de descobrir o artista que existe por detrás desse humilde e correto funcionário público”.

Na repartição, chegava a tirar férias no mês em que ocorria o concurso. Tudo porque não queria fazer feio. Mais do que isso: ansiava ver as pessoas o aclamando e cantando sua canção. Queria realmente ser um artista do povo.

Meu Deus, mas que dificuldade… preciso encontrar o tom certo, dizia enquanto tentava conciliar letra e música. Tinha certeza, absoluta, de que chegara a hora do sucesso e que, por isso mesmo, seria ungido pelo júri e pelo público. Até que…

Ao fazer a inscrição da sua marchinha no tradicional concurso, um rapaz responsável por carimbar a cópia impressa da música e dar o ok da organização, fez um breve, mas marcante comentário: “Que Deus, de fato, o ajude, pois tamanha insistência um dia vai fazer com que sua composição seja considerada campeã. Afinal, apesar de tudo o senhor não desiste.”

Como assim, o que significa esse “apesar de tudo”? – indagou Sandoval. “Olhe, vou ser bem honesto. Desses 25 anos em que o senhor se inscreve, pelo menos faz uns dez que sempre ouço, por parte dos organizadores e dos jurados, que suas músicas não tem emoção, que elas estão ultrapassadas. Me desculpe a franqueza, mas é que às vezes é melhor dar um chute no estômago do que ficar na expectativa de fazer a coisa errada.”

Aquela franqueza lhe doera a alma. Ficara sem reação, estupefato. Como esse rapaz tinha a audácia de dizer aquilo? Revoltou-se e foi embora sem se despedir. Chegando em casa, ainda um tanto quanto bravo, pegou o violão e se pôs a cantar a música inscrita. Mas eis que percebeu, pela primeira vez naqueles anos todos, que de fato faltava algo. Pôs-se a chorar e a maldizer todos. Mas por que nunca ninguém tinha dito aquilo antes? Por quê? Nem sua própria mulher… De enraivecido e inconformado, passou à tristeza. E a lamuriar que ao seu esforço faltava um algo mais: a tão e simples paixão. Que também estava em débito na sua vida familiar.

Na contramão dessa história, eis aqui uma marchinha que este colecionador de histórias considera graciosa e genial. E que é uma delícia na interpretação de um de seus autores, que por sinal é um desses personagens a quem, nesses tempos de reacionarismos bárbaros, esquecemos de dar a devida atenção mais do que merecida. “Papagaio enjoado” é a marchinha do querido amigo Luiz Carlos Roque, o Roque da Vila. Confiram…

 

 

A intermitência de Duílio

Nunca cedera na vida a uma gota de lágrima. Os irmãos, mais velhos por sinal, diziam que não se lembravam de cena desse tipo, nem mesmo quando todos, de castigo, levavam cintadas do pai na infância.

Passados mais de 50 anos, Duílio continuava impávido diante de qualquer situação que causasse comoção. Nada, absolutamente nada alterava os músculos da sua face.

Vivia recluso numa casa de vila, bem próximo ao centro. Limitava-se a sair apenas para compras usuais e para uma rápida passagem na banca de revistas, cujo proprietário se acostumara com a sua mania de folhear rapidamente as manchetes das capas de jornais.

Não tinha filhos – ao menos os vizinhos não sabiam – nem recebia visitas. Apenas uma vez um dos irmãos foi vê-lo, algo que durou exatos 10 minutos. Suas companhias eram um toca-discos e uma TV, que eram alternados com a leitura de vários livros – todos herdados da casa dos pais. Nada de animal de estimação nem de plantas.

Diziam que cozinhava. E bem, pois quando se punha a preparar comida, exalava uma fragrância saborosa da casa, capaz de despertar o mais arguto e faminto estômago que passasse naquela hora em frente do sobrado de cor amarela.

Ia também ao banco para pagar as contas e receber o dinheiro da aposentadoria – fora durante muito tempo “profissional de gabarito” de uma empresa automotiva. Começou como office-boy e terminou como chefe de departamento, comandando cerca de 500 operários nos áureos tempos. Na sua despedida da firma, fizeram-lhe uma homenagem e acabou recebendo uma placa de reconhecimento pelos bons serviços prestados.

Mas um dia, que seria mais um como tantos outros, o inusitado acontece. Duílio, que evitava falar com as pessoas – sequer cumprimentava os vizinhos – foi conversar com aquele rapaz, que apertava sem parar a campainha da casa.

“Mas o que você quer?”, reclamou.

“Me desculpe, mas o senhor era amigo da Erotildes?”

A única Erotildes, que conhecera na vida, fora uma menina por quem se apaixonara, perdidamente, aos 17 anos. Porém, nunca obtivera a aprovação da moça. Haviam sido amigos até os 21 anos, quando ela, sem muita explicação, casou com um primo.

Nem um mês transcorrera e Erotildes se mudou da cidade. Nunca mais a vira. Até aquele momento em que o filho dela batera à sua porta.

“Minha mãe faleceu recentemente. Em seu leito de morte, ela me fez jurar que encontrasse sua grande paixão da juventude para lhe dizer que sempre o amara. Cá estou.”

Então, Duílio se pôs a chorar, copiosamente, na frente do sobrado. Acabou abraçado e amparado pelo rapaz que, ato contínuo, entrou na casa e passou a contar sobre a vida de sua mãe. A tarde foi longa e só terminou com um “Obrigado e até logo” daquele senhor de 70 anos, ao abrir a porta de casa, no meio da madrugada. Que, dessa forma, dava assim uma (nova) chance para a vida e seus (des)encantos.

A respeito de um tempo que não volta mais, “Dança da solidão”, de Paulinho da Viola, é a música escolhida para refletir sobre Duílio e seus sortilégios…

DANÇA DA SOLIDÃO
(Paulinho da Viola)

Solidão é lava que cobre tudo
Amargura em minha boca
Sorri seus dentes de chumbo
Solidão palavra cavada no coração
Resignado e mudo
No compasso da desilusão

Desilusão, desilusão
Danço eu dança você
Na dança da solidão

Camélia ficou viúva, Joana se apaixonou
Maria tentou a morte, por causa do seu amor
Meu pai sempre me dizia, meu filho tome cuidado
Quando eu penso no futuro, não esqueço o meu passado

Desilusão, desilusão
Danço eu dança você
Na dança da solidão

Quando vem a madrugada, meu pensamento vagueia
Corro os dedos na viola, contemplando a lua cheia
Apesar de tudo, existe uma fonte de água pura
Quem beber daquela água não terá mais amargura

Para quem preferir, eis o vídeo com Marisa Monte e o próprio mestre Paulinho:

De novo…

Desde setembro de 2014, estive afastado do blog. O motivo, basicamente, foi a necessidade de dar um respiro à correria do tempo e também, entre outras coisas, fazer uma reflexão de como levar adiante a própria ideia contida neste blog – o de relatar as histórias das pessoas que, de tão próxima a nós, acabamos não nos atendo, sem dar a devida importância ou sequer, no mínimo, a merecida relevância. E, com isso, por dureza de espírito, displicência ou até mesmo soberba, acabamos nos fechamos apenas no nosso “mundinho interior”, achando ser suficiente apenas enxergar nosso umbigo ou, no máximo, a ponta dos nossos pés…

A recente onda de intolerância (muitas vezes acirrada por demais), que ora vem repercutindo no cotidiano, fez com que eu quase desistisse de retomar esse espaço. Porque para alguém que ainda acredita no outro e no que a observação desse outro tem a nos ensinar, a perda de crença se fez muito forte, a ponto de querer permanecer submerso em meio a tantas bravatas e desavenças em nome de um radicalismo puramente reacionário – e aqui não estou julgando a legitimidade ou não das manifestações ocorridas nem as justificativas (?) de cada lado.

Mas, ao mesmo tempo, esse colecionador de histórias se lembrou de conversas mantidas com amigos e, principalmente, com algumas pessoas que sequer imaginava serem leitoras (ainda que ocasionais) do blog. Recordei inclusive de contribuições de relatos que recebi (e que ainda não publiquei). Dessas conversas, cito o meu querido amigo Jair – cuja história a mim passada me sinto na obrigação de recuperar. E do não menos querido ator/cantor/compositor Aldo Bueno, que acompanhei na minha infância e, tempos depois, ironia ou não, vim a conhecer ao vivo e em cores, tendo o privilégio de compartilhar um pouco da sua convivência.

Por isso e também por perceber que ainda existem muitas boas histórias a serem contadas, recontadas e partilhadas é que insisto em retomar, mais uma vez, o blog. Pois ainda mantenho minha crença no ser humano – um ser humano que é capaz de encantar por simplesmente ser o que é: uma pessoa com qualidades e defeitos e que, por prepotência, muitas vezes erra, mas que mesmo assim, se tiver a alma aberta, passa a aprender com as falhas. Senhoras e senhores, o fato é que o colecionar de histórias ressurge. E, sempre que possível, procurando trazer um pouco de música para aninhar o dia a dia. Então, façamos um brinde à vida, como propõe, por sinal, a nova “cara” do blog…

 

VIDA DÁ
(Eduardo Gudin)

Quantas vezes nem sei
Eu quis na sorte mandar
Fiz promessa de rei
Que é pra nunca quebrar
Mas quebrei outra vez
E quantas vezes serão
Até eu saber
Vida dá lição

E se ter humildade é bom
Aprender que dá pra viver
Sem amor e com
O destino é a brisa
Se a gente seguir
Tormenta se a gente teimar
Precisa saber
Se deixar levar

Quem espera o que nunca vem
Quer guiar a vida
A vida não diz amém
Mas ela convida
Se a gente ficar esperto
E reconsiderar
É certo que a vida
Vai mais além

Quantas vezes nem sei
Eu quis na sorte mandar
Fiz promessa de rei
Que é pra nunca quebrar
Mas quebrei outra vez
E quantas vezes serão
Até eu saber
Vida dá lição

Eu já fui feliz no amor
E também já fui
Muito mais infeliz que sou
Isso pouco importa
Nem sei quem falou
Poetas que a gente nem vê
Discretas verdades
Têm mais valor

Fiz do samba
O maior dos sons
Sem desrespeitar
Aquele que diz botar
E como um cortejo
Eu vou terminar
Deixando o samba rezar por mim
Até o sol raiar enfim

Quantas vezes nem sei
Eu quis na sorte mandar
Fiz promessa de rei
Que é pra nunca quebrar
Mas quebrei outra vez
E quantas vezes serão
Até eu saber
Vida dá lição

O amor de Chico por Adélia

Minha cara Adélia,

Tenho a mais plena e absoluta certeza de que sem você a vida não tem mais graça. Faltam cor, sabor, cheiro, sons, encanto, risos e alegria nesse porvir cotidiano.

Pretensamente, achava que conseguiria suportar bem a sua distância. Puro devaneio. Mera ilusão de alguém que quer aparentar tranquilidade e que acredita que viver, por si só, basta. Mas não.

É preciso ir além. Pois o que mais quero é estar junto de você. Para sempre. Enquanto puder e tiver forças suficientes para seguir acompanhando seus passos. Enquanto o pulsar do meu coração permitir acompanhar o seu. Enquanto for capaz de sorrir ao seu lado e me emocionar com suas palavras e trejeitos. Enquanto não perdermos o interesse um pelo outro. Enquanto houver risos e surpresa ao ouvir suas histórias.

Na minha ânsia solitária, descobri que os minutos e os segundos se transformam em longevas horas sem você. Tudo parece parar e levar mais tempo do que é. E é assim. Porque tem de ser assim. Porque se espera isso dos enamorados. Porque o amor que sinto por você exaspera um eu que a quer sempre por perto e que me torna corajoso. Porque um simples bom-dia dito por você faz com que o dia já tenho valido a pena. Porque é muito bom acordar de manhã, bem cedinho, e vê-la ao meu lado.

Acredito que tudo que vivi até agora me preparou para estar de corpo, alma e coração com você. Sou eu na minha mais insensata certeza. Nesse momento, só tenho a garantia do quão necessário é sair e gritar pela rua o quanto amo você. O quanto lhe quero bem e o quanto a quero bem. O quão feliz me sinto ao falar com você sobre os assuntos mais banais e triviais. Que de tão banais se transformam em uma nova descoberta, por mais que já tenha escutado.

Somos diferentes? Não sei. Só sei que somos mais parecidos do que imaginávamos. E respeitamos a opinião um do outro. Entendemos um ao outro, podendo até não concordar em muitas coisas. No entanto, sabemos que por maior que seja essa diferença conseguimos encontrar um arco-íris furta cor ao final do dia.      

Para um ateu, tenho até rezado? Nas minhas mais absortas preces, quem diria, peço para que os céus me deem forças para poder acompanhá-la e fazê-la feliz. Para poder retribuir a você e ao mundo o quanto sou grato e feliz por termos nos encontrado após todo esse tempo. E que nunca nos esqueçamos um do outro.

Se é verdade que a paixão deixa vestígios e marcas, farei com que o amor que sinto por você transforme meus mais sórdidos dias em momentos de delicadeza e de dedicação para saber cultivar, com maior encantamento, o frescor que sinto por compartilhar esses momentos ao seu lado. Porque com você não há rotina nem monotonia. Apenas e tão somente alegria, parceria e a sensação, certeira, de que a vida vale, sim, a pena por ter nos possibilitado encontrar um com o outro.

 Do seu sempre terno e apaixonado Chico…

 

Para homenagear nosso Chico enamorado, eis uma canção na medida para a ocasião.

 

SEM VOCÊ

(Tom Jobim / Vinícius de Moraes)

 

Sem você
Sem amor
É tudo sofrimento
Pois você
É o amor
Que eu sempre procurei em vão
Você é o que resiste
Ao desespero
E à solidão
Nada existe
E o tempo é triste
Sem você
Meu amor
Meu amor
Nunca te ausentes de mim
Para que eu viva em paz
Para que eu não sofra mais
Tanta mágoa assim
No mundo
Sem você

 

Se preferir, eis o vídeo, na bela interpretação e no “tom” de um outro Chico…

À sombra das árvores

O guarda da entrada lateral do parque já sabia. Em dias alternados durante a semana e aos sábados, Teodora sempre iniciava a caminhada dando um abraço apertado – e que abraço! – nas suas “árvores de estimação”.

 

Dizia que as árvores conversavam com ela. Que a entendiam melhor até que os próprios filhos e o marido. Dava até a impressão de que trocavam segredos entre si. Costumava sussurrar junto a cada um das suas espécies preferidas. “Como vai? Senti tanto a sua falta…”

 

Aquela mulher se sentia realmente abraçada. Tanto que na hora de se soltar, suspirava. De felicidade. De emoção. “Sim, também sinto o mesmo.” Ao longo do percurso, para cada uma das árvores escolhidas, parecia cantarolar algo, bem baixinho.

 

A idade de Teodora? Sem querer parecer indiscreto, talvez algo em torno dos 60 anos. Tinha uma bela aparência e um olhar contemplativo. Usava óculos e os tênis sempre brancos, a ponto de dar a impressão de que nunca se sujassem.

 

Ah, ela tinha, por hábito, chamar as árvores por nomes próprios. O pau-brasil era tratado por Luiza; o jacarandá, Silvana; e o ipê, Mariazinha. Todas tinham sua própria denominação feminina. Mas por que somente nomes de mulheres? “Porque somente uma mulher é capaz de compreender a alma de outra. Ainda mais se ela tiver uma história não lá tão alegre”, dizia.

 

A caminhada pelo parque durava, em média, uma hora. E quando ia embora, Teodora parecia mais leve, mais livre. Livre dos problemas, livre das pessoas, livre de si mesma. Livre de uma vida mediana. Para tudo recomeçar em breve, muito em breve.

 

Em homenagem à Teodora e às “suas árvores”, eis a música da semana:

 

 

LUZ DO SOL

(Caetano Veloso)

Luz do sol
Que a folha traga e traduz
Em verde novo
Em folha, em graça
Em vida, em força, em luz…

 

Céu azul
Que venha até
Onde os pés
Tocam a terra
E a terra inspira
E exala seus azuis…

 

Reza, reza o rio
Córrego pro rio
Rio pro mar
Reza correnteza
Roça a beira
A doura areia…

 

Marcha um homem
Sobre o chão
Leva no coração
Uma ferida acesa
Dono do sim e do não
Diante da visão
Da infinita beleza…

 

Finda por ferir com a mão
Essa delicadeza
A coisa mais querida
A glória, da vida…

 

Luz do sol
Que a folha traga e traduz
Em verde novo
Em folha, em graça
Em vida, em força, em luz…

 

Reza, reza o rio
Córrego pro rio
Rio pro mar
Reza correnteza
Roça a beira
A doura areia…

 

Marcha um homem
Sobre o chão
Leva no coração
Uma ferida acesa
Dono do sim e do não
Diante da visão
Da infinita beleza…

 

Finda por ferir com a mão
Essa delicadeza
A coisa mais querida
A glória, da vida…

 

Luz do sol
Que a folha traga e traduz
Em verde novo
Em folha, em graça
Em vida, em força, em luz…

 

 

Aqui, o vídeo na voz, simplesmente, de Gal Costa…

De descobertas e redescobertas diárias

Porque se gostavam. E para eles isso era mais do que suficiente. Para Alberto, o momento era de surpresa e encantamento diário. Tivera alguns relacionamentos, e nunca se sentira assim. Para Fernanda, susto, admiração e a certeza de que a paixão pode ser terna e inspirada, instada no companheirismo.

 

Para ele, havia um misto de insegurança. “Mas e se ela me deixar? E se eu perder o encanto que sinto?” – sim, tinha dúvidas. Porém, ao contrário, e por mais ambíguo que isso seja, sentia-se plenamente seguro quando estava ao seu lado.

 

O mais curioso disso tudo é que Fernanda compartilhava dos mesmos pensamentos: “E se ele se for? E se ele se desinteressar por mim? E se eu não sentir mais graça dele?”

 

Contudo, o tempo demonstrava a eles que não havia espaço para dúvidas. Se no início a ansiedade mútua se sobrepunha em muitos momentos, especialmente nos mais simples – daqueles quando um liga para o outro para perguntar como havia sido o dia –, o passar dos anos apenas reforçara o que sentiam um pelo outro.

 

“Odeio a miséria do cotidiano”, repetira diversas vezes Alberto, ao longo do tempo em que namoraram. O inusitado é que continuava a recitar isso, como se fosse um mantra. E, no entanto, a situação era bem diferente.

 

O fato é que o casal permanecia embevecido pelas descobertas que ainda insistiam em desvendar. E se amavam com tanta felicidade, com tanto gorjeio, com tanta intensidade que isso rejuvenescia sua paixão, a admiração e o encanto de um pelo outro.

 

O resultado disso era visível aos olhos dos vizinhos e dos amigos. E, claro, da própria família. Brigas? Sim, e quem não tem as suas – era o que diziam aos mais curiosos e incautos. E assim eram os dias, as tardes e as noites.

 

“Mas neném, o que será de você quando eu me for?”, indagava Fernanda. Ao que Alberto, pacientemente, respondia: “Nada. Deixa disso. Pois quem vai na frente serei eu. Prometo a você que deixarei tudo preparado para quando você for me encontrar. Sem medo. Sem angústias. Sem dor. Apenas, e tão somente, amor. Eternamente, minha amada. Mas, por ora, carpe diem…

 

E assim, continuam vivendo. Dia a dia. Encantados pela vida. Encantados um pelo outro. Convivendo com as diferenças e as semelhanças. E sempre prontos para descobrir novos desejos pela mesma paixão.

 

Para Alberto e Fernanda, a música da semana selecionada:

 

 

EU PRECISO DIZER QUE TE AMO

(Dé / Cazuza/ Bebel Gilberto)

Quando a gente conversa

Contando casos

Besteiras

Tanta coisa em comum

Deixando escapar segredos

 

E eu nem sei que hora dizer

Me dá um medo

Que medo

 

É que eu preciso dizer que eu te amo

Te ganhar ou perder sem engano

É eu preciso dizer que eu te amo

Tanto

 

E até o tempo passa arrastado

Só pra eu ficar do teu lado

Você me chora dores de outro amor

Se abre e acaba comigo

E nessa novela eu não quero ser teu amigo

 

É que eu preciso dizer que te amo

Te ganhar ou perder sem engano

Eu preciso dizer que eu te amo

Tanto

 

E eu já não sei se eu tô misturando

Ah, eu perco o sono

Lembrando em cada riso teu qualquer bandeira

Fechando e abrindo a geladeira a noite inteira

 

É que eu preciso dizer que te amo

Te ganhar ou perder sem engano

Eu preciso dizer que eu te amo

Tanto

 

Quando a gente conversa

Contando casos

Besteiras

Tanta coisa em comum

Deixando escapar segredos

 

Eu não sei em que hora dizer

Tenho medo

 

É que eu preciso dizer que te amo

Te ganhar ou perder sem engano

Eu preciso dizer que eu te amo

Tanto

 

E até o tempo passa arrastado

Só pra eu ficar do teu lado

Você me chora dores de outro amor

Se abre e acaba comigo

E nessa novela, baby, eu não quero ser teu amigo

Não

 

É que eu preciso dizer que te amo

Te ganhar ou perder sem engano

E que eu preciso dizer que te amo

 

Eu já não sei se eu tô misturando…

Ah, eu perco o sono…

Lembrando em cada riso teu qualquer bobeira…

 

E eis o vídeo:

 

Vida bailarina

Porque bailava para a vida. Acreditava que isso a tornava melhor. No amor. Na dor. Na relação com as pessoas e com o próprio mundo. Sim, Catarina era uma bailarina. Aplicada, gostava da rotina dos ensaios, das aulas em que sempre, ansiosa, adorava aprender novas coreografias.

Sempre apostava na capacidade da dança para compreender a vida. Na solidão dos passos entendia que o seu mundo era todo um particular remoto de outras vidas passadas. Pois dependendo do compasso, sentia-se uma criança, uma adolescente à espera do primeiro beijo, uma dona de casa ou até mesmo uma avó daquelas bem protetoras.

Para ela, não existia o perigo das lesões, o cansaço físico nem o sono de noites mal dormidas. Nada. Bailava, e por gostar tanto disso não se importava com os percalços cotidianos.

Até que um dia, sem mais nem menos, após um rodopio lindo, parou de dançar. Viu sua imagem no espelho e não entendeu. Assustou-se. Calou-se. E começou a achar um monte de imperfeições no seu rosto. Não satisfeita, tirou as sapatilhas e não se conformou com a cena.

Nunca havia olhado para os próprios pés. Surpreendida, passou a chorar. Chorou copiosamente. As lágrimas escorriam e não findavam. Sentia uma dor forte no peito. Às escâncaras, reclamou: “Mas por que, meu Deus?”

O fato é que nunca reparara que seus pés eram cheios de calos, a pele ressecada, as unhas sem brilho e bem curtas. Definitivamente, aqueles não poderiam ser seus pés. Os pés de uma bailarina. O pior é que percebeu que pareciam mais os pés de uma senhora. Os pés de uma mulher idosa sofrida.

Ficou nesse estado por um bom tempo. Impossível mensurar. Horas, dias ou mesmo semanas… Ao invés da face sorridente, uma cara amarga. No lugar da bela postura de toda bailarina, as costas retraídas, cansadas e encolhidas. Perdera o brilho do olhar.

Mas eis que um dia, muito que subitamente, olhou ao redor e percebeu que a vida não era tão ruim assim. “Nada como um dia após o outro”, dissera a si mesma. E Catarina levantou-se da cama, sem auxílio algum, para caminhar um pouco pelo quarto. Respirou fundo. E viu, surpresa, que os seus pés, apesar de ainda parecem envelhecidos, tinham uma certa graciosidade, um certo charme. Sorriu, abriu a porta e saiu pelo corredor do hospital. Feliz. E dando passos. De bailarina.

Em homenagem à Catarina, a bailarina, eis a música selecionada:

MORDAÇA

(Eduardo Gudin / Paulo César Pinheiro)

Tudo o que mais nos uniu separou
Todo o que tudo exigiu renegou
Da mesma forma que quis recusou
O que torna essa luta impossível e passiva

 


O mesmo alento que nos conduziu debandou
Tudo o que tudo assumiu desandou
Tudo que se construiu desabou
O que faz invencível a ação negativa

 

É provável que o tempo faça a ilusão recuar
Pois tudo é instável e irregular
E de repente o furor volta
O interior todo se revolta
E faz nossa força se agigantar



Mas só se a vida fluir sem se opor
Mas só se o tempo seguir sem se impor
Mas só se for seja lá como for
O importante é que a nossa emoção sobreviva



E a felicidade amordace essa dor secular
Pois tudo no fundo é tão singular
É resistir ao inexorável
O coração fica insuperável
E pode em vida imortalizar

E aqui o vídeo com Paulo César Pinheiro, Gudin e Márcia…

A você, meu pai

Pai, eis que por esses dias sua lembrança se fez presente. Lembrei-me, de imediato, das manhãs de domingo, quando saíamos, após o café da manhã, para ir ao mercado comprar refrigerante, a massa, o molho de tomate, a carne moída e o queijo ralado para a tradicional macarronada, preparada pela mãe no almoço.

 

Havia a sacola verde escura, bem resistente e grande, onde colocávamos as compras. Na volta, passávamos na banca e você comprava o jornal, além de sempre deixar que eu escolhesse algum gibi.

 

Já em casa, eu ficava assistindo à TV, nossa velha TV preto e branco. A memória me trai um pouco, mas acho que eu via algum programa infantil, ou algo que o valha, que me fazia ficar entretido até o almoço ficar pronto. Na minha gula infantil, repetia o prato pelo menos uma vez, sempre “armado” com os talheres azuis.

 

Você lavava a louça. Eu ficava vendo mais um pouco de TV com a mãe, que a partir desse momento era a responsável pela escolha do que assistíamos – geralmente Silvio Santos.

 

No meio da tarde, lembro que você lia o jornal, ouvindo o jogo de futebol pelo rádio. Foi ali que passei a gostar de ouvir rádio. Também pudera. Aquelas narrativas me deixavam tenso, imaginando como seria cada um daqueles lances. Acabada a partida, arrumávamos a mesa de jantar para aí, sim, disputarmos quem era o melhor no futebol de botão. Quantos jogos memoráveis disputamos naquele “campo”… Tenho quase certeza que você me deixou ganhar a maioria deles.

 

Quando o almoço não era em casa – e acho que íamos ao menos uma vez por mês comer fora aos domingos – acordávamos cedo e nosso destino era a “cidade”. O velho centro velho, onde iniciávamos com a missa na Catedral da Sé, as pipocas que eu jogava para os pombos ali na praça e a tradicional ida a um restaurante de comida chinesa na Liberdade. Foi lá, aliás, que aprendi, na marra, a como usar os tais do “hashi”. Para finalizar, dávamos uma volta pela feira de artigos orientais do bairro.

 

Eu, que gosto muito de música e não saberia viver sem ela, tenho bem registrado o seu legado musical. Tudo escutado por meio das fitas cassetes que você comprava e colocava para ouvirmos no rádio, já que não tínhamos aparelho de som. De cara, Roberto Carlos e todos os nomes da Jovem Guarda. Tinha também bastante Milton Nascimento, Simone, algumas do Chico Buarque e, para minha surpresa naquele momento e eu não compreendia muito bem, Raul Seixas.

 

É verdade que nos afastamos por um bom tempo, mesmo convivendo juntos. Nossa história nos levou a isso. Mas não cabe aqui nenhuma queixa nem arrependimento. Pelo contrário. Se hoje sou quem sou, devo muito a você. Sem dúvida. E o melhor: estamos mais próximos hoje do que nunca estivemos. Mais do que pai e filho, somos parceiros. De vida. A você, meu pai, um beijo. O abraço deixo para nosso próximo encontro.

 

Para lembrar um pouco desses momentos, a música selecionada não poderia ser outra:

 

 

TENTE OUTRA VEZ

(Raul Seixas)

 

 

Veja!
Não diga que a canção
Está perdida
Tenha fé em Deus
Tenha fé na vida
Tente outra vez!

 

Beba! (Beba!)
Pois a água viva
Ainda tá na fonte
(Tente outra vez!)
Você tem dois pés
Para cruzar a ponte
Nada acabou!
Não! Não! Não!

 

Oh! Oh! Oh! Oh!
Tente!
Levante sua mão sedenta
E recomece a andar
Não pense
Que a cabeça aguenta
Se você parar
Não! Não! Não!
Não! Não! Não!

 

Há uma voz que canta
Uma voz que dança
Uma voz que gira
(Gira!)
Bailando no ar
Uh! Uh! Uh!

 

Queira! (Queira!)
Basta ser sincero
E desejar profundo
Você será capaz
De sacudir o mundo
Vai!
Tente outra vez!

 

Tente! (Tente!)
E não diga
Que a vitória está perdida
Se é de batalhas
Que se vive a vida
Tente outra vez!

 

 

E eis o vídeo com o próprio Raulzito:

Sobre leveza e histórias de amor

Retorno ao tema do primeiro post de 2014 por conta de um comentário, muitíssimo bem-vindo, de uma doce e terna amiga, que também mantém um blog (“Verdades e Insanidades”) que recomendo ser visto.

 

Tomo liberdade de reproduzir parte da sua consideração: “O Florentino Ariza tinha um amor obsessivo e não correspondido pela Fermina Daza, o Bentinho era atormentado pelo ciúme, Tristão, Rodin, Diego, todas histórias intensas mas que acabaram meio pesadas. Eu não escolheria nenhuma delas, escolheria intensidade, mas com final feliz.”

 

Elaine, minha querida, você tem toda a razão. Mas quero lembrar que naquele post (“Para 2014, apenas uma história de amor”) deixei bem claro que a história não será nenhuma dessas. Será tão e simplesmente uma história pessoal, toda minha.

 

Claro que isso exige de mim um certo desprendimento – sou tímido, afinal. Porém, estou certo, esperançoso, crente de que é a hora de me tornar protagonista, e não mais mero figurante. Porque o amor exige isso: coragem, confiança e um olhar mais leve e dedicado ao outro. Disso estou convencido. Disso irei em frente. Sem temor, sem medo, sem cobranças, sem exageros.

 

Portanto, serei eu mesmo o personagem central dos posts em determinadas ocasiões. Ou em todas (?). Tenha certeza de que não acredito nem quero uma história de amor laudatória, enciumada, intensa (no sentido de ser algo pesado e pesaroso). Nada disso. Incorrer nesses percalços não. Até porque já tive minha cota de relacionamentos tensos, inquietos e cáusticos. No mínimo, sei o que não quero.

 

Finalizo esse post relembrando o que eu mesmo já havia escrito: “Mas e se a história for construída a partir deste colecionador de histórias? Para isso, basta querer. E disso, estou plenamente convicto. Porque quero. Porque ainda acredito na toada amorosa, que deflagra seus sortilégios nos ambientes mais vagabundos, mais vis, porém carregados de intensa paixão, sendo capaz de torná-los nos mais belos e ternos jardins, povoados por ‘Frankensteins’ que se transformam em beija-flores.”

 

Elaine, você tem toda razão quanto às escolhas das canções para ilustrar essa história de amor. Suas sugestões foram na veia. Por isso, de maneira totalmente escancarada e terna, a música da semana é “Todo amor que houver nessa vida”.

 

PS – Você não imagina quão surpreso fiquei ao ler seu post. Não me julgo merecedor de tanto carinho assim. Emoção à flor da pele e uma vontade louca de encontrá-la o mais breve possível para lhe dar um abraço bem apertado – daqueles em que a gente mesmo se abraça. E um beijo para partilhar toda minha leveza de espírito…

 

TODO AMOR QUE HOUVER NESSA VIDA

 

(Cazuza / Frejat)

 

 

Eu quero a sorte de um amor tranquilo
Com sabor de fruta mordida
Nós na batida, no embalo da rede
Matando a sede na saliva
Ser teu pão, ser tua comida
Todo amor que houver nessa vida
E algum trocado pra dar garantia


Que ser artista no nosso convívio
Pelo inferno e céu de todo dia
Pra poesia que a gente não vive
Transformar o tédio em melodia
Ser teu pão, ser tua comida
Todo amor que houver nessa vida
E algum veneno antimonotonia


E se eu achar a tua fonte escondida
Te alcanço em cheio, o mel e a ferida
E o corpo inteiro como um furacão
Boca, nuca, mão e a tua mente não
Ser teu pão, ser tua comida
Todo amor que houver nessa vida
E algum remédio pra dar alegria

 

 

Eis o vídeo, com o próprio Cazuza…

Um brinde para Elisa

Algumas amizades, por mais recentes que sejam, dão uma sensação curiosa de existirem por tempos. É como se fosse algo além do que conhecemos. Algo que a vida, por mais curvas e desvãos dados, insiste em promover. E ainda bem que essa teimosia latente ocorre, sendo capaz de conferir um tom especial a esses encontros.

 

Não me lembro muito bem o que conversamos quando nos falamos pela primeira vez, Elisa. O que guardo na memória – e isso aconteceu numa noite/madrugada de sexta para sábado – é quando você disse gostar de mim. E eu lhe respondi (ainda sóbrio, creio) que quem gostava de você era eu.

 

Acredito que o afeto, quando sincero, não precisa de palavras certas, formais, milimétricas… Vale o momento, o gesto, o abraço apertado, o beijo estalado na face e  até mesmo chorar de emoção.

 

O tempo e os ocasos da vida nos afastaram de uma melhor convivência. Pena. Mas nada de lamentos, de murmúrios, de possíveis cobranças (que às vezes ocorrem entre as pessoas) pelo distanciamento. Tenho certeza de que não cabe isso na nossa amizade.

 

Elisa, sempre terei presente comigo o seu humor sarcástico, sua ironia desprendida e sua maneira de falar o que pensa de forma simples e direta. A imagem sua que minha memória retém é você sentada na cadeira da padaria, com o copo de cerveja levantado, brindando a chegada de mais um dos frequentadores do local. Tudo acompanhado por um sorriso, além do cigarro e do isqueiro largados sob a mesa.

 

Não conversamos ainda o tanto que, julgo, temos a falar. Não importa. O que interessa é que da última vez que nos vimos consegui perceber no seu olhar toda uma ternura, vivacidade e interesse em saber sobre as novidades dos amigos, das pessoas com as quais cruzamos no cotidiano; enfim, os mistérios e segredos do mundo.

 

Não sei quando e onde você irá ler esse texto – se é que irá lê-lo em alguma oportunidade. Saiba, minha cara, que levas de mim o melhor que posso ofertar: a gratidão, o reconhecimento, o carinho e o muito obrigado por termos nos encontrado nesses tropeços e curvas que a vida dá. A você, um beijo estalado no lado direito do seu rosto… e um até em breve, muito em breve por sinal.

 

Deixo aqui uma singela homenagem a você: a música selecionada da semana… Espero que gostes…

 

A PAZ

(Gilberto Gil / João Donato)

A paz

Invadiu o meu coração

De repente me encheu de paz

Como se o vento de um tufão

Arrancasse os meus pés do chão

Onde eu já não me enterro mais

 

A paz

Fez o mar da revolução

Invadir meu destino

A paz

Com aquela grande explosão

Uma bomba sobre o Japão

Fez nascer um Japão da paz

 

Eu pensei em mim

Eu pensei em ti

Eu chorei por nós

Que contradição

Só a guerra faz nosso amor em paz!

 

Eu vim

Vim parar na beira do cais

Onde a estrada chegou ao fim

Onde o fim da tarde é lilás

Onde o mar arrebenta em mim

O lamento de tantos ais!

Para quem preferir, eis o vídeo: